[AutoNarrada] Uivos Além das Fronteiras: Libertando uma Alma Perdida.

O astro rei banhava Foz Dourada com o seu calor logo nos primeiros minutos daquela manhã, enquanto já era possível notar a existência de trabalhadores na região portuária. O trabalho braçal era algo notável naquele ambiente, figuras de tamanhos e raças distintas carregavam e descarregavam as colossais embarcações que não paravam de chegar por ali, enquanto outras partiam em direção à imensidão do mar.

— Obrigado por estar me ajudando! — Uma voz ligeiramente infantil se destacava em meio a tamanho barulho, tratava-se de um jovem na casa dos seus dezesseis anos, com olhos azuis como o próprio céu e o cabelo de tonalidade castanho-escuro. Em suas costas era possível ver uma caixa de madeira já gasta, recheada por um número considerável de iguarias marítimas, que por sua vez, pingavam um suco de odor nada agradável.

— Não precisa agradecer, estou apenas ajudando alguém da própria espécie. — A voz era ligeiramente rouca e passava uma calmaria como o próprio mar — Esses são os últimos de hoje? — A indagação era feita enquanto ambos caminhavam em direção a uma carroça velha, era possível notar algumas imperfeições em uma das rodas, mas o velho decrépito que aguardava impacientemente as últimas peças chegarem não parecia se importar com isso.

— Vamos garoto! Lerdo como de costume! Está me fazendo perder dinheiro. — Sua voz era irritante e passava uma arrogância sem tamanho, que por sua vez, forçou a figura de madeixas longas a arquear uma das sobrancelhas — Ele sempre age assim com você? — Questionou com um olhar sério enquanto ajeitava os dois caixotes em um dos ombros. O garoto não respondeu, porém, sua face deixava clara todo o horror que ele vivia perante aquele velho homem — Não se preocupe com isso Cedric… — Ele estava claramente tentando disfarçar a vivência nada agradável que tinha.

Detalhes Narrativos:

Os passos do lobo-homem pareciam pesados e sua expressão destacava a inquietação que sua mente estava passando naquele momento. Estava claro que o modo com que o mercador tratou o jovem era errado, no entanto, o maior pesar para Cedric era não poder fazer nada quanto a isso.

— Se ele tivesse aceitado minha ajuda… — Resmungava em meio a rua movimentada de Foz Dourada, que por sua vez contava com uma variedade interessante de comércios. Algumas pessoas vagavam por ali em passos extremamente acelerados, como se não pudessem perder míseros segundos das suas respectivas vidas, enquanto outras caminhavam em uma lentidão como se contassem com todo tempo do mundo.

Não tardou para que Cedric alcançasse seu destino, uma simplória taberna de aparência rústica, afinal, havia um símbolo de uma grande caneca no topo do lugar. O interior do ambiente era carregado de um cheiro forte causado pelos resquícios de bebida que caíam no chão, sinceramente, o dono não parecia se importar com tal trivialidade. Haviam algumas mesas e cadeiras dispostas, todas construídas com madeira de qualidade duvidosa, mas que faziam seu trabalho com certo louvor.

— Aquela caneca continua feia como de costume, Thomas. — Um sorriso largo se formava no rosto de Cedric enquanto caminhava em direção a um homem alto, com uma protuberância exagerada na região do abdômen e uma quantidade considerável de gordura em volta dos músculos — Alguém já lhe falou que você é uma pessoa repetitiva? — Retrucou a figura enquanto dava um forte aperto de mão — Sempre forte como um touro! — Brincou o homem.

As figuras pareciam próximas ao ponto de ter uma certa amizade entre eles, passando alguns bons minutos conversando sobre assuntos variados, inclusive, o ocorrido na região portuária de Foz.

Detalhes Narrativos:

— Então o jovem não quis ajuda? Realmente, desse jeito você não pode fazer nada. — A voz de Thomas ecoava pelo ambiente vazio, tendo apenas as duas existências dispostas em uma das mesas — Infelizmente. — Cedric parecia visivelmente triste com aquela situação, no entanto, o homem entendia que nem sempre as coisas são como deve ser — E você está bem, meu amigo? Ainda tendo aqueles pesadelos? — Aquele era um ponto sensível para o lobo-homem, no entanto, até então Thomas era o único com que ele partilhou seu passado com tantos detalhes — Aquela cena ainda surge em minha mente, nunca irei esquecer dos horrores que vi naquela noite. — O peso das palavras do cão instaurou um clima com as mesmas proporções na singela taberna — Mas, as coisas são como são, meu amigo. — Finalizou.

A dupla continuou a papear por mais alguns minutos, que tornaram-se horas. Os assuntos eram colocados na mesa com certa velocidade, enquanto ambos degustavam de uma refeição proporcionada pelo próprio Thomas, um singelo prato de arroz, carne e alguns legumes — Então você precisa que eu os ajude? — Questionou Wolfsbane afastando o prato vazio para o centro da mesa — Não vejo problema, você sempre me ajudou desde que cheguei em Foz Dourada e ainda serei pago por isso. — Um sorriso largo e sincero tomava conta da face do homem com celeridade — E você mesmo diz, sou forte como um touro! Isso não será um problema, meu amigo. — O acordo era firmado com um novo aperto de mãos, que culminou no fim daquela cena.

Detalhes Narrativos:

A passagem de tempo ocorreu fugacidade, sendo a Foz Dourada banhada agora com o brilho intenso da Lua. A região portuária de Amani continuava movimentada, claro, com uma menor abundância de embarcações atracadas na região portuária do território.

— Você é Cedric, certo? — O início da conversa ocorria a uma certa distância das Docas de Foz, em uma pequena estreita choupana no limite do da área.

— Sim, Thomas me mandou para ajudá-lo. — As palavras do homem cortavam o som que os pequenos animais faziam ao redor daquela simplória residência.

— Eu não posso pagar mui… — A figura envelhecida não conseguiu terminar sua frase, já que o próprio Cedric ergueu sua mão em um sinal de “pare”.

— Não há problema nisso, o que você tem é mais que o necessário para suprir minhas necessidades. — Um sorriso sincero era visto na face do lobo-homem, que por sinal, parecia mais cintilante.

Do outro lado existia um homem de pele envelhecida, com a pele deveras enrugada, havia uma genuína expressão de cansaço em sua face. Sua casa era, como citado anteriormente, pequena. Havia apenas uma janela feita de maneira - assim como o restante da casa -, o assoalho estava sendo, aos poucos, comido por cupins e o telhado dominada por longas teias de aranha. Pela janela era possível ver uma pequena carroça carregada com alguns caixotes e sacos feitos com pele animal, um trabalho rústico e ao mesmo tempo realizado com um detalhamento digno de um hábil costureiro.

Cedric parecia ligeiramente inquieto, seus pés cintilavam no assoalho como o compasso musical. O homem sabia que o tempo era curto, a embarcação que levaria o velho homem para Skraev não demoraria muito para partir, porém, ao mesmo tempo sentia a necessidade de aguardar o tempo do velho homem. O odor que o mesmo externava não era um dos melhores, o lobo-homem já havia vivido tempo o bastante para entender o significado daquilo, Flint não tinha muito mais tempo de vida.

De maneira súbita uma espécie de missão aparecia na visão de Cedric, algo que lhe remeteu ao ocorrido de outrora, onde ocorreu o encontro com aquelas estranhas barracas.

Detalhes Narrativos:

O lobo-homem não tardou em pedir licença ao anfitrião, o motivo usado? Aquecer o corpo para realizar a breve viagem até o porto de Foz Dourada. A noite estava calma e sem delongas o rapaz começou a mover seu corpo, realizando uma série intensa de flexões, erguendo o peso do seu corpo utilizando seus braços, mantendo o corpo completamente estável e o abdômen controlado.

Aquilo era difícil? Para outros até poderia ser uma árdua tarefa, no entanto, para o lobo se mostrava algo bem simples. Assim que finalizou os movimento deitou seu corpo no chão de terra, começando a segunda sequência de movimentos que esquentavam a altura do abdômen. Seus olhos estavam direcionados a lua que brilhava com intensidade, enquanto o suor escorria pela sua face, mostrando todo seu esforço e dedicação naqueles movimentos.

Não tardou para que ele retornasse a presença do velho.

Flint mostrava dificuldade em levantar da velho poltrona que há muito tempo servia como seu descanso, tendo o apoio de Cedric para colocar-se de pé.

— Você é realmente grande. — Comentou o velho homem com um sorriso amarelo em seu rosto.

— É o que dizem por aí, mas o senhor deve saber que existem criaturas maiores que nós humanos. — Comentou o lobo com uma expressão sincera e recheada de empátia.

— Isso sim! Principalmente os homens-lobos, ou seriam lobos-homens? Bem, eles ficam imensos. Também existem os gigantes além de Skraev e aqueles Orcs cheio de músculos, já avistou algum desses? — A frase saiu com lentidão enquanto ele caminhava com auxílio do pedaço de madeira esbranquiçada que utilizava como bengala.

— Vê isso aqui? Consegui com os próprios elfos! — Tentava mostrar com entusiasmo, sendo agraciado com os olhos aguçados e cheio de vida de Wolfsbane.

— Parece ser um produto de muita qualidade. E sim, já encontrei algumas coisas estranhas por aí… mas, não tanto quanto o senhor. — Comentava o homem caminhando devagar ao lado do senhorzinho.

A dupla não tardou a ser banhados pela luz da Lua, aquilo preenchia Cedric com uma sensação interessante, para ele era sempre bom ter esse contato. A carroça não estava muito pesada, ainda era abaixo das capacidades do lycan.

— Aqui está o pagamento, antes que me esqueça. — Disse Flint tirando algumas moedas de prata do pequeno bolso existente em suas vestes, entregando ao seu “companheiro” de viagem.

— Obrigado. Temos um longo caminho até o porto, iremos no seu tempo. — Comentava o homenzarrão tomando seu lugar como um verdadeiro “cavalo”, iniciando a puxar a carroça.

A dupla continuou em passos lentos em direção a região portuária de Foz Dourada, seguindo por uma rudimentar e até mesmo grosseira estrada de terra. O início sucedeu-se com algumas paradas, era nitidamente difícil para o centenário homem se despedir da sua residência, no entanto, aos poucos foi conseguindo tomar um ritmo mais consistente.

— Você já percebeu que não tenho muito mais tempo, estou correto? — O silêncio da viagem foi cortado com aquela sentença que fez o lobo arquear uma das sobrancelhas.

— Como poderia saber disso? — Indagou Cedric um tanto quanto incrédulo.

— Lobos não costumam ter o faro aguçado? Ou você é estranho até entre os seus? — Aquilo saía em um tom hilário, Flint estava claramente brincando enquanto cutucava o grande homem.

— Como descobriu? — Bradou de maneira simples e direta — Espere, Thomas, certo? — Perguntou de maneira retórica, afinal, a resposta estava clara como a lua existente naquele céu sem nuvens.

— Há anos atrás fui próximo de muitos como você, mesmo se Thomas não existisse eu iria conseguir descobrir em um piscar de olhos. — O velho parecia cada vez mais cansado, assim como sua voz — Vamos parar um pouco aqui, grande lobo. — Comentou enquanto caminhava em direção a uma pequena rocha, sentando-se com dificuldades, ficando de frente para a imensidão do mar.

— Tenho um pedido para fazer. — O tom mudava por completo, o brilho era perdido e dava lugar a um peso que chegava a causar desconforto aos ouvidos de Wolfsbane — Você pode dar a minha liberdade? — Questionou o velho homem.
— O que você quer dizer com isso? — Indagava ainda sem saber o que estava ocorrendo.

— Eu perguntei ao Thomas se conhecia algum lobo forte o bastante para carregar minhas coisas até o navio, mas você já percebeu que qualquer um poderia levar essas coisas… — Uma crise de tosse interrompeu o velho homem.

— Sangue? — Deixou escapar ao sentir o odor ferroso do líquido carmesim, de fato, Flint havia expelido uma quantidade considerável da fonte da vida.

— Eu carrego um arrependimento de ter me separado da alcateia que fazia parte. Como pôde ver, não sou um Lycan como você, porém, no momento mais sombrio da minha vida fui agraciado com a presença deles. Me protegeram, me deram uma nova perspectiva de vida… porém, fui covarde em não segui-os até o fim. — As palavras do homem eram carregadas por uma amargura dolosa, era visível o arrependimento e culpa que carregava em seu peito desde então.

— Porém, nunca me esqueci de algo. Para eles, quando um humano morria pelas mãos de um lobo por vontade própria, sua alma iria para o mesmo plano que os lobos. Cedric, eu acredito nisso. — Era possível sentir a sinceridade em suas palavras.

O silêncio tomou conta do ambiente enquanto ambas as figuras admiravam a beleza natural do mar, Flint não falou mais nada, tampouco Cedric que apenas permaneceu pensativo.

— Você tem certeza disso? — O silêncio cessou após alguns minutos.

— Sim. Não tenho família, tampouco amigos que irão sentir minha falta. Deixe meu corpo aqui mesmo, o importante é que minha alma estará com minha família. — Bradou o homem.

Cedric se moveu vagarosamente ficando de frente com Flint, colocando ambos os joelhos no chão e apoiando uma das suas mãos no ombro do velho homem.

— Você está pronto? — Questionou com um olhar de dor, mas ao mesmo tempo de condolência.

— Sim. Obrigado, Cedric… — Bradou fechando os olhos tendo uma expressão de paz em seu rosto.

As garras negras cresceram e foram banhadas com a luz da lua, o mar estava calmo e o silêncio voltou a dominar o ambiente. Cedric sabia que aquilo não era o certo a se fazer, entretanto, não podia negar um pedido feito com tanto sentimento quanto aquele. Talvez, em outro momento, o lobo-homem tentaria ajudá-lo de outra maneira, mas o próprio sabia que aquela era a única forma possível.

Suas garras não tardaram a atravessar o coração de Flint, que não sofreu em sua morte. Wolfsbane o colocou deitado no mar, de maneira que o brilho da lua atingisse seu corpo que, aos poucos, fora levado pela maré. E as coisas de Flint? Foram deixadas ali mesmo pelo, talvez fosse útil para alguém que passasse por ali. Para onde Cedric foi? Não deu para ver com tamanha velocidade que seu corpo se moveu, no fim, apenas um uivo carregado de remorso ecoou pela imensidão daquele território.

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