[Off Fechada] Leash

Meus passos eram acompanhados de sons característicos, até porque eu caminhava sobre enormes poças de chuva sem ao menos me importar. A barra de meu vestido estava completamente enlameado e meus cabelos pingavam quando enfim cheguei ao corredor pelo que vi ele entrar. Era por onde os empregados se movimentavam, sendo um corredor de pedra estreito e com caixas entulhadas.

Segui pelo caminho, encontrando a cozinha completamente vazia aquele horário. Mary ainda não havia acordado para preparar seus deliciosos quitutes, por isso a quietude do lugar era quase aterrorizante. Senti como se fosse um rastro de energia seguir por um caminho, ao qual levava a uma espécie de masmorra que meu pai nunca havia me permitido ir antes. Aquele demônio viveria ali? Por isso meu pai nunca me autorizou ir?

Retirando os sapatos que estavam encharcados e denunciavam minha chegada, segui pela porta que estava entreaberta. As paredes de pedra pareciam extremamente antigas, muito mais do que o restante da casa ou até mesmo da antiga igreja. O cheiro ocre de mofo era presente, bem como de ferrugem. As velas iluminavam fracamente o local, e o único som que eu ouvia além de meu coração palpitando, era de metais se arrastando, como correntes.

Me esgueirei pelas paredes aproveitando a escuridão delas, mas algo me fez paralisar. O demônio estava se prendendo em uma espécie de jaula, com uma claraboia acima de si. Olhei rapidamente para a porta de entrada quando senti uma presença. Meu pai descia as escadas, carregando um livro antigo nos braços. Corri até uma outra jaula afastada da entrada, me agachando para que a escuridão me escondesse.

Meu pai era um homem velho já, com os cabelos ralos e grisalhos e uma expressão séria no rosto. Nunca foi de conversar comigo, especialmente após a morte de minha mãe. As poucas vezes que tive sua presença, foi para me instruir e ensinar acerca de coisas religiosas. O que ele fazia ali?

O acompanhei, até vê-lo se aproximar da jaula do demônio.

— Como foi? — Perguntou austero, eu não conseguia ver que expressões fazia, mas sua voz era fria como estacas de gelo.

Eu ouvia sons de coisas se arrastando próximo a mim, sobre o piso e as madeiras de pedra rústica. Talvez fossem… patinhas? Deuses. Me encolhi arrepiada em um canto, esperando que nenhum deles se aproximasse de mim, não querendo denunciar minha presença ali. Estava extremamente curiosa para saber o que aquele demônio representava para minha família, e o porquê ele estava preso em um lugar como aquele.

A resposta da criatura me fez congelar. Meus olhos se arregalaram e minhas mãos foram parar em minha boca entreaberta. Mortos? Todos eles? O que isso significava? O que meu pai… O que meu pai tinha a ver com isso? Aquele demônio era algum tipo de… animal sanguinário?

Meu pai suspirou com a resposta monótona dele, como se fizessem esse tipo de encontro e devolutiva toda semana. Pousou o grimório sobre uma mesinha de madeira desgastada ao seu lado e seus dedos se enrolaram no cabo de um longo chicote.

— Eu deveria te dar algum petisco como merecimento? — Perguntou baixo, batendo com o chicote e estalando o couro no chão. — Ou esse cachorrinho sarnento sabe que não fez mais do que foi mandado? Hein, seu demônio imundo? — Esbravejou ele, agora adotando uma postura completamente enraivecida que me deixou ainda mais assustada.

O chicote fez um arco no ar antes de atingir a criatura, o som do couro estalando sobre sua pele me fez arfar e morder a língua. Mais uma vez os sons arrepiantes encheram o ambiente e meu corpo estava paralisado, em choque.

Sequer pensei. Minha mente girava em um caleidoscópio de horror. Eu nunca imaginaria meu pai agindo daquela maneira, mesmo que fosse com um demônio. Ele sequer havia mostrado resistência… — PAI! Meu pai… O que… — Balbuciei como uma boba ao arrastar os pés para fora de meu esconderijo. O sangue escorria das feridas recém-abertas do demônio, que se misturavam às cicatrizes antigas. Eram… eram disso suas marcas?

— O que está acontecendo? — Perguntei rouca.
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Meus olhos lacrimejados encaravam meu pai sem conseguir acreditar. Sem conseguir processar nada daquilo. Chicote, instrumentos de tortura, sangue seco espalhado pela superfície e uma criatura que sequer mais emitia som algum de dor ou súplicas. Há quanto tempo aquele demônio vivia daquela maneira? Eu temia saber a resposta.

— Lena?! Deuses. O que faz aqui embaixo? Quantas vezes eu já te disse para… — Sua voz confusa e ainda assim autoritária se desfez quando o demônio o provocou. Gemi assustada ao caminhar dois passos para trás, longe de meu pai. Quem seria a criatura sanguinária ali? Um demônio ou… meu próprio pai?

— CALE A BOCA, DESGRAÇADO IMUNDO! — Cuspiu contra ele, o açoitando repetidas vezes antes de enfim jogar o chicote ao chão. Eu não conseguia me mover, falar algo, sequer piscar… Crianças… Crianças são seres inocentes…Por que… Por que meu pai usaria uma arma contra crianças? — Lena. Não queria que soubesse assim… Mas como sua curiosidade e insensatez te fizeram descer aqui, está na hora de saber quem é essa vil criatura.

O observei pegar o grimório enegrecido entre as mãos, abrindo e revelando páginas tão amareladas e antigas que sequer estariam inteiras caso não tivessem uma magia as preservando.

— Nossa família possui o poder e o controle sobre esse enviado do inferno. Possuímos seu verdadeiro nome, contido aqui nesse grimório. Através dele conseguimos o controlar para vingar nossos deuses e mantenha a paz em nosso ducado. — Disse ele calmamente, como se não fosse um completo absurdo isso.

— A magia que envolve tudo isso é tão forte e poderosa que sequer tocar em qualquer um de nós ele é capaz. — Seu meio sorriso de escárnio me fez arrepiar, encarando o demônio pelo canto dos olhos. — Ele agora pertencerá a você também, até que eu morra, onde será a única dona dele. — Balancei freneticamente a cabeça, fechando os olhos com força enquanto engolia o nó que estava em minha garganta.

— Lena! Me escute. Ele é um demônio… Um enviado do inferno para trazer o caos e a destruição. Ele abomina toda a sua fé e seus deuses, entendeu? Por isso ele merece isso. Por isso precisamos de sua força para manter a paz. Você entendeu? — Seus dedos agarram meu braço com força o suficiente para me fazer arfar e eu apenas balanço a cabeça positivamente.

Aquilo era uma loucura completa. Por que não só tê-lo matado de uma vez e extirpado suas trevas de nosso mundo? Segurei o grimório com os braços trêmulos, enquanto meu pai continuava a me dar instruções que não passava de uma voz distante.

Demorei alguns minutos para perceber que estava sozinha com o demônio. Ajoelhada sobre o chão de pedra, em frente à sua jaula, eu encarava apenas as grossas e enferrujadas correntes.

— Isso… isso é verdade? — Perguntei rouca, sem saber exatamente o que especificar. As crianças… Pobres crianças. — Vallmolath é realmente o seu nome? — Me arrepiei novamente ao pronunciá-lo, sentindo uma brisa fria soprar em minha nuca.

Fechei ambas as mãos em punho conforme o demônio começou a falar, de maneira monótona sobre as atrocidades que ouvi naquela manhã chuvosa. O sangue ferveu em minhas veias ao ponto de me fazer encará-lo intensamente.

— Baboseiras? — Cuspi. Eu nunca havia sentido tanta raiva em toda a minha vida. Talvez sendo até mesmo a primeira. Complacente e gentil, aceitei tudo de todos sem reclamar ou duvidar de nada, mas ouvi-lo dizer que ter um demônio escravizado como arma, que matava crianças, fez toda minha sensatez ser varrida para fora de minha mente.

— Matar crianças é baboseira pra você? — Berrei, me erguendo nos joelhos enquanto não conseguia conter as lágrimas de descerem. Não o culpava… Meu estado de fúria atual não era por ele ter feito aquilo, uma vez que ele não tinha escolha para tal. Mas, com a frieza que encarava aquela situação. — Quantas… quantas crianças já matou? Quantas atrocidades precisou fazer para chegar ao ponto de encarar isso como baboseira? — Arfei, me jogando sentada no chão.

O sangue daquelas crianças estava em minhas mãos. A vida dele estava em minhas mãos. Encarei-as. Tão pequenas e magras, pálidas e salpicadas de sardas. Eu usei elas apenas para ajudar ao próximo e juntá-las em preces. Mas agora uma coleira invisível e nauseante se amarrava à minha pele, presa como se fosse em brasas.

— O quanto de sua alma restou, Vallmolath? — Perguntei ao levantar o rosto em sua direção novamente. Eu sabia a resposta, desde o momento que o encontrei no cemitério.