[Off Fechada] Leash

Eu não conseguia deixar de encarar minhas mãos, abertas sobre minhas coxas. O vermelho vívido do sangue inocente manchava minha pele, escorrendo vagarosamente até o chão. Esfreguei contra o tecido o mais avidamente que pude, mas simplesmente não sumia. Grunhi. Frustrada. Minha fé era baseada em uma mentira. Eu me sentia uma farsa.

Amelia. Thomas. Leo. Sam. Atilla. Nomes que eu adicionaria em minhas preces, pedindo perdão às suas almas por partirem de maneira tão abrupta e trágica. Não esperava, no entanto, perdão. A penitência suficiente seria tê-los atormentando meu sono e sonhos, com certeza suas vozes sussurrantes se uniriam a outras dezenas que eu ouvia diariamente… Como um estalo, ergui rapidamente o rosto. Aquelas vozes, aquelas presenças, vultos… Seriam vítimas de minha família?

— Você… não teve sequer escolha. Sinto muito por viver assim. — Digo baixinho, a voz tão falha quanto a própria força de meus membros. Eu estava cansada, esgotada, as lágrimas secaram em meu rosto, como em um caminho serpenteado de uma dor que não era minha.

— Irei chamá-lo de Rain. Se não se importar. Assim lembrarei sempre do dia em que te conheci. — Murmurei, encarando-o pela primeira vez em algum tempo ali sentada. Aquele... homem? Criatura estaria em uma parte importante de minha vida, por isso gostaria sempre de lembrar de quando o conheci. — Se não se importar… — Fungo, limpando o nariz contra a manga de meu vestido ainda molhado. O sangue começava a secar em sua pele, mas algumas feridas ainda estavam abertas.

Ergui-me o suficiente para pegar uma adaga, onde a usei para rasgar a barra de meu vestido e assim usá-lo como um trapo. Me aproximei de Rain, engatinhando sobre a pedra, ignorando o ardor em minha pele. O que era isso em comparação ao que ele sofreu? Suas marcas eram profundas, muito mais agora que eu estava tão mais próxima. Sua altura era quase majestosa, sendo o dobro de meu tamanho. O cheiro ocre de sangue misturado ao mofo do lugar me fez franzir o nariz.

— Imagino que se regenere com o tempo, mas vê-lo sangrar me aflige. — Comecei a secar o sangue de sua pele com o tecido, esfregando com gentileza onde havia escorrido e também pressionando levemente nas feridas abertas de seu braço e antebraço, mantendo um ritmo constante com que eu o limpava. Por vezes meu olhar se esgueirou para seu rosto, que de perto parecia ainda mais belo, como se fosse esculpido.

— Alguma outra hora em que meu pai não estiver em casa, trarei utensílios melhores para que se limpe. — Mordi o lábio ao não conseguir encará-lo por muito mais que poucos segundos. Seu olhar vazio era intenso, profundo, instigante, e naquele momento, meu rosto se esquentava de uma maneira quase acusadora.

Com uma parte limpa dos trapos, arrastei os joelhos para mais perto, tocando seu rosto levemente com a mão esquerda. Eu deveria limpar ali... Haviam sujidades e também um pouco de sangue... Mas... Por alguns instantes me perdi na imensidão que era a escuridão de seus olhos. — Seus olhos... parecem duas pequenas galáxias. -- Sussurrei.

Deixei o pedaço de tecido ensanguentado de lado enquanto encarava o líquido carmesim manchar minha pele. Engoli em seco ao lembrar de quantas vezes vi essa cena. Pessoas doentes do ducado, mulheres em trabalho de parto. Nunca um demônio escravizado. Por minha família. Suspirei, erguendo o rosto para o encarar enquanto sorria cansada.

— Eu gosto muito da chuva. Sair nela, seu som parece que anula todas as vozes de minha cabeça. Posso conversar com minha mãe sem ninguém me ouvir… Então, não me traz apenas coisas ruins. Conheci você no meu lugar preferido. — Confessei, sentindo o rubor cobrir minhas bochechas com aquilo. Sempre fui extremamente boba em relações assim, ainda mais quando ele tinha três metros de altura e músculos cobrindo todo o corpo.

Soltei seu rosto assim que notei o que ele havia falado. Meus olhos... meus olhos lembravam do lugar pacífico que vivia. Por que aquilo fez algo se remexer em meu estômago? Como se algumas borboletas vivas estivessem lá. Comprimi os lábios ao sorrir, me afastando um pouco como se já tivesse passado demais dos limites.

Isso me fez lembrar que ele vestia apenas uma tanga surrada. Deuses.

— S-SIM! Sim. — Pigarreei constrangida. — Pode… pode arrebentá-las por enquanto, pedirei as chaves ao meu pai. — Disse, não sabendo exatamente como funcionava isso de “mandar” e “desmandar” mas imaginava que ele tinha força o suficiente para arrebentar aquilo caso quisesse, mesmo enfraquecido pelo sangue.

Me reencostei na parede. Cansada. O dia mal havia começado, mas era como se eu tivesse feito tantas coisas já. Tantas informações em minha mente naquele momento e eu só queria esquecer tudo aquilo.

— Sinceramente? Não faço ideia. Eu prometo pela minha vida que nunca te machucarei, nem mandarei que faça nada contra sua vontade. — Digo, dando uma pausa. Eu não sabia como faria para libertá-lo, nem no que isso acarretaria. Mas, naquele momento, não queria pensar nisso.

— Como é o lugar que você nasceu? — Pergunto baixinho, após alguns minutos de silêncio.

Algo que eu nunca imaginaria ver, surgiu no rosto endurecido de Rain. Foi como uma pequena florzinha que desabrochava após um inverno rigoroso, querendo surgir por entre toda a neve e a aspereza da estação. Um sorriso. Um meio sorriso, para ser mais justa. Mas, que pareceu combinar tanto com ele. Algo dentro de meu peito se remexeu gostosamente, uma sensação nova e quente. Eu queria ver mais daquelas florzinhas desabrocharem. Quem sabe uma grande flor da próxima vez?

Manti o sorriso quando notei que ele pareceu mais confortável sem as algemas e correntes, sentando de maneira mais confortável. Meu olhar curioso novamente vagou por ele, em como a linha de seu pescoço descrevia músculos proeminentes, ou como seus ombros ficavam ainda mais largos daquele ângulo. Sentou até mesmo como… Pisquei algumas vezes quando notei. Suas pernas estavam em um ângulo que favorecia detalhes de suas coxas que eu não havia reparado antes. Ou como o vão desnudo que adentrava para suas virilhas estava quase que estrategicamente tampada com uma fina parte de sua tanga surrada.

Minha boca ficou seca. Ou salivando mais que o normal? Umedeci os lábios com a língua ao respirar profundamente, como se tentasse me conectar comigo mesma. A forma com que seu corpo era construído me atraía de uma maneira que não conseguia explicar. Ele era uma máquina de matar, e eu não sabia se em todos os sentidos.

— O.. o que? Ah! — Engoli a saliva que se acumulava em minha língua e me forcei a desviar o olhar. Ele encarava o teto enquanto falava e seria rude de minha parte encará-lo assim. Mas… Nunca passou pela minha cabeça como seria um... um homem nu. Deuses. A mera curiosidade fazia meu coração acelerar.

— Bem, não quero ser rude, mas nunca irei visitar sua terra natal. Sinto muito. — Comento, tentando quebrar um gelo que se formava em minha própria cabeça, dando uma risadinha divertida. — E… sobre mim? Ah, não tenho nada de tão interessante a contar. — Murmurei mais cabisbaixa, onde meu sorriso se tornou mais frio. — Desde que aprendi a falar, sou ensinada a rezar. Nunca pude brincar com outras crianças porque isso tiraria meu foco. — Suspiro.

Costumava brincar sozinha, na maior parte do tempo com uma gatinha que rondava o cemitério antigo. Conforme fui crescendo a solidão se petrificou em meu coração e eu… simplesmente não me importei mais.

— Nem tive tanto contato com minha família. Quer dizer, sem contar meu tio. Ele disse que se casará comigo. Não que eu tenha sonhado em algum dia me apaixonar e... Bobagem. — Ri sem humor. Eu não sabia exatamente se os deuses estavam me punindo ou me abençoando com aquilo. De repente, pisquei assustada em sua direção, notando algo que ele disse. — C-canto? — Pergunto esganiçada. Eu amava cantar. Era como se pudesse ter um vislumbre de liberdade em forma de música. — E-então você consegue me ouvir daqui? Isso... isso é tão embaraçoso. — Afundei meu rosto entre as mãos, encolhendo também os ombros ao rir abafada, espiando-o por entre os dedos.

Me vi brincando com a barra rasgada de meu vestido, ainda molhado. As minhas roupas secavam em meu corpo, já que vim diretamente para cá. Meu cabelo deveria estar desgrenhado e rapidamente levei as mãos até ele para o ajeitar. Não queria parecer desajeitada perto de Rain. Talvez por ser ensinada a não ser daquela maneira na presença de ninguém. Ou era fruto da maneira nervosa que eu ficava em sua presença, como se seu grandioso corpo e suas asas intimidadoras me fizessem parecer ainda mais pequena.

— Nunca gostei de comida apimentada mesmo. — Dei de ombros, esperando alguns segundos para rir bobamente. Era confortável conversar com ele, apesar de… apesar de todo o resto. Uma conversa quase casual com um conhecido. Um amigo, talvez, futuramente. Talvez minhas noites em claro pudessem ser passadas aqui com ele, afinal.

— É, acho que não. — E então as palavras ou qualquer linha de raciocínio sumiram de minha mente como fumaça se esvaindo. Rain havia saído de sua jaula, parado diante de mim, em pé, em seu esplendor magnífico. O encarei como uma boba. Uma boba de lábios entreabertos em choque, olhos quase que famintos para tentar enxergar algo que se escondia pela má iluminação do lugar.

Meu coração se acelerou de uma maneira que me fez arfar. Eu não conseguia desgrudar os olhos de seu dorso, tão majestoso sobre mim. Pensamentos pecaminosos me invadiam, aos quais eu culpei a natureza dele. Isso, com certeza era sua natureza contra a minha em conflito. Só isso para explicar o desejo de percorrer minha língua sobre sua pele.

— E-e-eu... eu acho que não tenho muita escolha, não é? — Pigarreei, como se pudesse fazer aquele bolo de ansiedade descer por minha garganta. Ainda estava em choque por conseguir me ouvir, ainda mais por ele ter... gostado. Deuses. Ele provavelmente me acharia uma boba por estar tão tímida daquela maneira, mas ouvir elogios tão sinceros de alguém que deveria me odiar fazia algo estranho em mim. — Quem sabe um dia... Canário. — Dei uma risadinha. Eu amava esse pássaro.

— Você precisa de roupas também? — Perguntei de repente, como sempre acontecia quando algum pensamento vinha atropelando todos os outros. Talvez tivesse sido desrespeitoso comentar o modo que ele se vestia. Talvez ele sempre se vestiu assim? Quer dizer. Mais... livre, não sei. Mordi o interior da bochecha em nervosismo, ainda tentando capturar alguma nova imagem dele pelo canto dos olhos.

Eu conhecia muito sobre os panteões. Sobre o que cada deus ou deusa gostava, ou desgostava, quais eram seus dogmas e desejos. Conhecia até mesmo seus domínios. Mas, até aquele momento, eu nunca havia de fato entendido qual o sentido do caminho de minha patrona.

Esperança. Vida.

Era o que eu sentia ali com Rain. Aquela sensação quente em meu corpo, mesmo que as minhas vestes encharcadas me arrepiassem de frio. Um formigamento em minha carne, algo como se eu conseguisse visualizar algo além do pré-estabelecido durante toda a minha vida. Olhar para aquele demônio, ouvir sua voz grave, sentir seu cheiro tão característico. Ele mudava algo dentro de mim.

Sem os cabelos grudados em meu rosto, consegui observá-lo melhor. Quer dizer. Perceber que ele me observava. Claro que eu não conseguia notar exatamente o que ele encarava, já que não haviam pupilas, mas aquelas duas pequenas galáxias estavam fixas em mim, quase que me convidando para me jogar nelas.

— O.. você não gosta das minhas? — Rebati sua pergunta, mordendo o lábio como se o provocasse. Eu tinha completa certeza que preferia sempre vê-lo usando aquela canga. — Talvez uma mais nova — mas com certeza só aquela tanga. Por que esconder um corpo tão bonito? Eu com certeza passaria horas registrando cada mini detalhe de seus músculos, gravando até mesmo cada cicatriz.

— Na verdade, seu corpo parece ter sido feito para vestir-se assim… — Divaguei, me atrevendo a tocar as cicatrizes de seu antebraço com as pontas dos dedos, percorrendo os desenhos que se formavam. Ele lembraria como aconteceu cada um desses açoites? O que levou a eles? — Mas, não quero ser como eles. Arrumarei tecidos e aprenderei a costurar algo para você. — Falei de forma leve, voltando a agarrar meu vestido com ambas as mãos, percebendo que talvez eu tivesse o tocando demais.