[Off Fechada] Leash

Eu nunca imaginaria que existisse dentro da minha própria casa, um lugar que me trouxesse… aconchego, como naquele porão mofado e destruído, cheio de baratas e ratos. Não sabia que existia alguém ali que me causasse tanto conforto, mesmo estando sentada em um chão frio de pedra, com uma roupa molhada. E também sendo um demônio.

Encarei minhas próprias roupas perante seu comentário, levando talvez mais tempo do que seria esperado para entender. Mas é claro que ele já estava sorrindo daquele jeito que fazia um vácuo no meu peito, expelindo aquela sensação gostosa de novo por meu corpo, assim que viu minha expressão de surpresa.

— Só se alguém tomá-la de mim. Como… como num assalto. Ou algo do tipo. — Emendei, para não parecer… impuro demais. Deuses. Tudo nele me fazia pensar desse jeito, como se uma parte dormente em meu cérebro formigasse para isso. Engoli em seco ao respirar fundo algumas vezes. Minha patrona não gostaria de ver os pensamentos que eu estava tendo agora. Mas, também não me culparia totalmente.

Afinal, se eu o encontrei, conheci e me sentia tão bem em sua presença, foi obra de suas mãos em nossos destinos.

As borboletas fizeram cócegas em meu interior novamente quando ouvi sua voz que agora era tão mais gentil, me chamar de canário. Precisei disfarçar o sorriso bobo para que ele não me achasse uma garotinha boba. Era só um apelido, afinal. Assim como eu o chamava de Rain.

— Tem razão, mas ainda assim o farei. Quem sabe um dia precise sair comigo. Para algum lugar legal, não sei… Não se incomodaria com outras garotas te olhando assim? Quer dizer. No geral. — Dei de ombros. Como eu conseguia falar tanta merda em tão pouco tempo? Ele poderia achar que eu estaria tendo… ciúmes?

— Tem certeza? Não quero parecer invasiva. Gosto da sensação da sua pele, ou do calor que eu não imaginava que teria. — Mesmo perguntando para ter certeza, avancei uma vez mais, usando agora ambas as mãos para tracejar ambos os antebraços. O toque áspero das cicatrizes contrastava com o macio de sua pele, um calor diferente do que eu já havia sentido abraçando meu pai, por exemplo. — Parecem gravuras… Desenhos. Como se contassem sua história. — Sussurro, roçando a parte interna de seu cotovelo, mesmo não tenso sequer cicatrizes ali.

As mãos dele me tocaram a cintura, me segurando com gentileza enquanto os braços me acolhiam de certa forma. Meu coração voltou a palpitar, mas de uma maneira diferente. Ninguém fora de minha família havia me tocado assim. Ou de qualquer outra forma. Era novo, emocionante, empolgante… Quantos outros sentimentos haviam aqui dentro que eu não saberia nomear? O que era esse calor preenchendo meu peito? Esse frio na barriga, essa vontade de… de tê-lo mais perto, mais junto. Eu estava tão confusa, tão temerosa de estar mergulhando nessa confusão tão gostosa.

— Por que alguém mandaria você tirar minhas roupas? — Perguntei séria, sem entender dessa vez onde ele gostaria de chegar, mesmo que ainda estivesse corada só de me imaginar desnuda a sua frente. Rain era tão, tão maior que eu… Tão intimidador, que com certeza nua eu me sentiria ainda menor. Frágil.

— Então… Isso quer dizer que você não se incomodaria. — Não foi bem uma pergunta, mesmo que talvez meu tom mostrasse isso. Uma pitada de… desapontamento. Por que exatamente? Por que eu estava desapontada com ele confortável tão exposto a olhares de outras? De outros, quer dizer.

Fiquei em silêncio por alguns segundos enquanto me concentrava nele. Haviam mais dessas em seus bíceps, algumas linhas finas do que me deixou curiosa para saber o que havia causado, mas sabia que seria insensível perguntar. — Se depender de mim, gostaria de saber da sua história daqui pra frente diretamente de seus lábios, não por mais marcas como essas. — Murmurei gentilmente, mesmo que o pequeno sorriso que repuxava o canto de meus lábios era triste. Não dependia só de mim tudo isso, nem sequer qualquer promessa que eu fazia internamente para ele. Como melhorar sua vida, ou mais loucamente, como libertá-lo.

Liberdade.

Por um momento me peguei sentindo algo negativo. Se ele fosse liberto, iria embora com certeza. Não ficaria mais na presença da família que o escravizou por tantos séculos. Iria embora atrás de alguma felicidade que com certeza ele merecia, e eu ficaria sem a única pessoa a qual senti alguma conexão real.

Egoísta;

Era fácil demais estar com ele. Era fácil não ficar simplesmente travada por estar quase abraçada com um homem. Um demônio. Sua risada era fácil, gostosa. Sequer consegui me sentir constrangida por estar rindo de mim, apenas aproveitando o que parecia uma sinfonia angelical. O encarei com doçura, sorrindo também de maneira tão fácil enquanto me enchia com uma alegria fácil.

Permaneci com as mãos apoiadas em seus ombros, que de tão largos, poderiam facilmente abrigar dezenas de mãos como as minhas. Pisquei rapidamente para afastar o pensamento de outras mãos ali. Urgh, que sentimento estranho toda vez que flashes disso acontecendo invadiam minha imaginação, bem como aconteceu quando ele falou sobre mulheres de minha família.

— Curiosas? Com o que exatamente? — Murmurei, descendo as mãos para deixá-las apoiadas sobre seus antebraços, como se estivéssemos… Como estávamos? Desci o rosto para nos analisar e mordi o lábio, estranhando a proporção, mas gostando tanto da visão. Eu sentia que estava vivendo em alguma outra realidade, como se a qualquer momento a porta desse porão fosse arrombada e qualquer resquício que tive de alguma felicidade fosse arrancada de mim.

— Haverá novas histórias. Algum dia… Nos encontraremos e você me contará tudo o que viveu de novidade. Quero ouvir suas aventuras. — Tentei melhorar meu sorriso, ignorando o nó na garganta e o quanto eu me odiava naquele instante. Ele merecia isso. Muito mais do que qualquer um. Ter uma alma para chamar exclusivamente de sua. Liberdade. Uma vida.

— Oh. — Exclamei surpresa quando ele puxou meu rosto para o encarar. Mais um salto em meu coração com aquelas galáxias me encarando. Quantas vezes eu me sentiria perdida apenas por olhá-lo? Quantas vezes eu sentiria tudo aquilo tão gostoso em meu peito e a realidade me socaria tão forte no estômago que eu não seria capaz de aguentar.

Respirei fundo. Uma. Duas. Parei de contar. Segurei sua mão contra meu rosto, deitando levemente a cabeça para aproveitar só mais um pouquinho daquele calor. Daquele toque. — Estava pensando apenas em tudo o que sofreu, Rain. Espero que um dia isso termine. — Murmurei baixinho.

Como eu poderia me entristecer de perder alguém que acabei de conhecer? Eu encarava Rain e sentia como se pudesse o conhecer de outras vidas. Como se meu coração o pertencesse de outras histórias. Outras Lenas e outros Rains. Sem maldições e deuses. Apenas… apenas nós dois. Mas, não era tão fácil, não é? Uma história bonita onde a felicidade não dependia de nada.

Não haviam correntes ou atnomens.

Agarrei sua mão contra meu rosto com ainda mais avidez. Fechei os olhos enquanto me permitia sonhar. Sonhar novamente que asas de liberdade me faziam voar. Asas essas que agora tinham um rosto, um sorriso lindo e um calor tão aconchegante quanto um dia preguiçoso a beira da lareira.

— Por que eu, Rain? De todas as pessoas no mundo… Logo com meu sobrenome você decidiu… decidiu… me escolher. Você deveria me odiar, assim como eu comecei quando descobri o que meu sangue te causou. — Murmurei baixinho e embargada, sentindo uma lágrima pequena escorrer em minha bochecha. — Meu sangue te causou tanto sofrimento. E-eu… ao seu lado… fora daqui… — Sequer conseguia formar alguma frase coerente.

Aquele bolo na garganta decidiu fazer o caminho de volta antes que eu pudesse ter algum controle. Me sentia ainda mais pequena. Mais frágil. Impotente. Como ele me levaria para conhecer a liberdade com que eu sonhava se sequer eu conseguia libertá-lo?

Me lancei sobre ele, onde meus braços agararram seu pescoço como se fosse minha única salvação de algo que eu sequer compreendia. Me agarrei a ele como um salva vidas em um mar aberto e revolto. O abracei com força, trazendo seu rosto para meu pescoço.

As lágrimas quentes em meu rosto me tornavam uma boba, provavelmente. Mas, era apenas uma explosão de sentimentos que acabou saindo de uma só vez, como se eu não tivesse conseguido engolir o suficiente delas para que permanecessem apenas comigo. Eu sempre chorava sozinha na cama, por que agora estava fazendo isso diante dele?

Me afundei em seus braços, que tão maiores que eu, cobriram quase completamente meu corpo em algo que aplacou parte da minha dor. Aspirei seu cheiro com força, roçando o nariz em sua pele. Aquilo me acalmava, e esperava que minha memória guardasse o suficiente para que fosse o suficiente quando a noite chegasse.

Ouvi alguns passos pesados demais sob a escada, e então a porta foi aberta abruptamente. Ergui a cabeça para lá com surpresa, me afastando de Rain e sentindo uma sensaçãod e vazio enorme tecer minha pele.

— Lena? Você quer que esse desgraçado apanhe mais por sua causa? Está atrasada para a missa. — A voz grossa de meu pai me fez sobressaltar. Ergui-me em pé e encarei Rain, os olhos apertados em uma dor silenciosa. Eu queria poder me despedir, falar algo sequer, mas meu pai poderia castigá-lo por isso. Apertei meu escapulário com força e lancei um último olhar a ele antes de sair.